Escrita por Uendel de Oliveira, Doutorando em Artes Cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA, Dramaturgo e Professor de Teorias do Teatro. Você pode conferir essa e outras críticas de Uendel para outros espetáculos e filmes no seu blog: falandosobrecena.blogspot.com
A família dessacralizada
O espetáculo Sagrada família, dirigido por Tássio
Ferreira junto a Cia. Hedônicos, baseado em Os
Sinos, obra do dramaturgo Marcos Barbosa, em cartaz no palco do Cabaré dos
Novos, no Teatro Vila Velha em Salvador, põe em cena o desmantelamento da imagem
da família como instituição sagrada. Em cena, um universo de desejos e ações
reprováveis que anunciam e, de fato, resultam em um desfecho catastrófico.
A narrativa
do espetáculo mostra em dois planos – o do presente e o do passado – as relações
entre os membros de uma família, formada por pai, mãe, duas filhas e um filho,
sendo que este aparentemente sofre de algum mal mental. A filha mais velha é aquela
que mantém um relacionamento mais estreito com o irmão, que é tratado como
bastardo e frequentemente trancafiado num quarto pelos demais. A outra filha
sente-se preterida pelo pai, que nutre pela primeira um desejo incestuoso. A
mãe age como a figura passiva, que não reage aos desmandos do marido, sempre
violento.
No plano do
presente, acompanha-se o velório da irmã mais velha, cuja causa da morte
permanece um mistério até próximo do fim. É durante o velório que essa
informação vem à tona, que todos os personagens ficam sabendo dos eventos
terríveis que, até então, eram mostrados apenas para o espectador no plano do
passado, e que o filho mais novo finalmente explode em ódio contra o pai. E no
passado, vê-se o amor da filha mais velha por outra mulher, que desencadeia uma
reação brutal do seu pai; a inveja e as artimanhas da outra irmã para tentar
ocupar o lugar da primeira; e os abusos sexuais cometidos pelo pai contra a
filha que faleceu.
A cena é
dinâmica, a direção investe ora em cenas silenciosas, ora em cenas onde a
trilha sonora desempenha importante papel para a composição dos climas, o que
resulta em algumas imagens impactantes. O cenário apresenta elementos que
funcionam como alusões aos objetos de cena – como camas, um oratório, etc. As
exceções são o caixão – necessário para a cena –, e uma porta colocada ao
fundo, cuja presença destoa dos demais elementos. Há um claro cuidado com o
figurino e a maquiagem, usados como elementos, inclusive, que diferenciam os
tempos da ação. Nesse sentido, a iluminação também contribui fundamentalmente
para estabelecer a distinção entre os planos do passado e do presente, embora
por vezes as transições se deem de maneira brusca.
O elenco está
regular, embora seus desempenhos não tenham alcançado as nuances pedidas por
seus personagens. Por vezes, diante de situações de grande sofrimento, as composições
dos atores resvalam no histrionismo, contudo, é possível identificar que se
trata de detalhes que podem claramente ser aperfeiçoados com a sucessão das apresentações. Importa
destacar, ainda, o desempenho do coro, formado por três mulheres, e que cumpre
a função de comentar poeticamente e anunciar as ações acontecidas.
Contudo, há
questões de ordem espacial que criam dificuldades ao espectador. Por vezes, a
disposição da plateia e o uso dos objetos de cena criam vários pontos cegos
sobre o palco. Acrescentando o fato de que há muitas cenas em que os atores
ficam sentados ou deitados no chão, a visualização de momentos importantes fica
muito comprometida. Por exemplo, o caixão colocado diante do palco no mesmo
nível do olhar do espectador, cria uma barreira para que ele acompanhe certas
cenas. As poucas
ressalvas não impedem que se reconheça as proposições estéticas apresentadas
por Sagrada Família, que poderá
resultar num grande espetáculo, à medida que certos detalhes sejam revistos.
(Texto: Uendel de Oliveira)