Esta página se dedica a tudo que se relaciona a dramaturgia: eventos, peças, artigos, resenhas etc. Publicaremos aqui todas as peças encenadas pela companhia, além de indicações de leituras de peças de dramaturgos que atuam na Bahia - ressaltando uma iniciativa já recorrente na companhia, que é a valorização da dramaturgia baiana.
E já inauguro a página com o trecho de meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de licenciatura em teatro, no qual discuto a questão da abordagem dos gêneros da poética na sala de aula. Trago essa discussão, porque acredito que o estudo da dramaturgia ele necessita da mínima compreensão dos gêneros da poética. Quem se interessar pelo trabalho completo, posso enviar via email.
OS GÊNEROS POÉTICOS E AS ESCOLHAS
EDUCACIONAIS
Por mais que a teoria
dos três gêneros, categorias ou arquiformas literárias tenha sido combatida,
ela se mantém, em essência, inabalada. [...] Tampouco deve ela ser entendida
como um sistema de normas a que os autores teriam de ajustar a sua atividade a
fim de produzirem obras líricas puras, obras épicas puras ou obras dramáticas
puras. A pureza em matéria de literatura não é necessariamente um valor
positivo. Ademais, não existe pureza de gêneros em sentido absoluto.
(ROSENFELD, 1994,
p.16)
Para
tratarmos de dramaturgia, se faz importante uma abordagem introdutória acerca
dos gêneros poéticos: a Lírica, a Épica e a Dramática, entendendo o que cada um
representa e quais procedimentos de escrita compõem cada um, elucidando traços
da escrita dramática propriamente dita, cujas obras acabam sempre contaminadas
pelos três gêneros.
De
partida, faz-se importante frisar que os gêneros poéticos, intimamente ligados
uns com os outros, trazem uma característica em comum: derivam da instintiva
necessidade do homem de imitar (criativamente), desde a infância, adquirindo
nisso prazer e conhecimentos. Mas não se trata aqui, obviamente, de modelos
normativos de criação e recepção:
Os gêneros já não se
confundem com uma função única: a de criar entre produtos e receptores a
expectativa de um texto literário. A imagem de sua unicidade funcional agora se
metamorfoseia na imagem de filtros que não só separam o literário do
não-literário, quanto, dentro deste, contêm ajustadores especiais, qualificando
certo tratamento para certo gênero e o impregnando para aquele outro.
(LIMA, 2002, p.272)
Neste
sentido, os estudos dos gêneros poéticos também funcionam como delimitação dos
estudos literários em geral, oferecendo uma divisão, um filtro, como defende
Lima, que facilita a categorização dos objetos literários, com clara
aplicabilidade prática. Para nós, da licenciatura, é através dessa divisão que
conseguimos estabelecer paralelos concretos e traçar analogias que facilitem a
compreensão dos discentes acerca da diversidade da literatura.
Mas
cabe apontar que a questão dos gêneros não está tão somente relacionada a uma
abstração do objeto literário, com base no estudo de conceitos. A questão é,
também, sócio-política e histórica:
Os gêneros não são
nem realidades em si mesmas, nem meras convenções descartáveis ou utilizáveis ad libitum. São sim quadros de
referências, de existência histórica e tão-só histórica; variáveis e mutáveis,
estão sintonizados com o sistema da literatura, com a conjuntura social e com
os valores de uma cultura. Estes últimos tanto acolhem ou modificam o perfil
dos gêneros em função de mudanças históricas [...] – quanto simplesmente
rejeitam certa espécie sua, obrigando aos restantes terem rendimento diverso
[...].
(LIMA, 2002, p.273)
Os estudos dos gêneros, vistos por essa ótica, dão a
perceber, através do discurso de Lima, um mecanismo de exclusão: os sujeitos
sociais são, muitas vezes, estimulados a aderir predominantemente a um único
tipo gênero por imposições sócio-culturais. O gênero dramático muitas vezes
adquiriu certa conotação diabólica, sendo praticamente extinto da prática comum
a partir do século XIII, na Idade Média, por imposições da igreja, sendo então
obrigado a se incorporar única e exclusivamente às moralidades cristãs,
tratando dos ensinamentos bíblicos, na tentativa de arrebatamento de fiéis para
a instituição da igreja. Fugindo desta regra apenas o teatro profano, que
acontecia à revelia do estado cristão (a igreja).
Ao tratar dos gêneros
poéticos, é preciso, portanto, que tenhamos cautela. Especificamente, me refiro
ao tratamento dos mesmos em um ambiente escolar. Normalmente se observa, por
parte dos professores, uma tendência a tratar do assunto de modo muito
restrito. Retratam-se a Lírica, a Épica e a Dramática com um rigor que pertence
única e exclusivamente à conceituação abstrata do gênero, relegando-se o
caráter híbrido das obras.
Entendo gênero
como reunião de características básicas de determinada classe ou grupo de seres
ou coisas. Ou ainda como uma categoria distintiva de uma composição literária
(nosso caso). Reunindo peculiaridades que o formam, ele pode ser até entendido
como puro, mas o será apenas como conceito, permanecendo inabalado apenas no
conjunto de características que o constitui, idealmente:
Os conceitos são
independentes dos casos empíricos por se tratarem de idéias a priori, que resistam à mudança de
nossa opinião sobre as obras: “Essas significações mantêm-se firmes; na opinião
de Husserl, é absurdo dizer que elas oscilam. O valor das obras que tentamos
julgar de acordo com esta idéia é que pode variar: uma pode ser mais ou menos
lírica, épica ou dramática que a outra. Também os ‘atos que a conferem a
significação’ podem aparentar caráter dúbio. Todavia, uma vez captada a idéia
do ‘lírico’, esta é tão irremovível como a idéia do triângulo ou como a idéia
do ‘vermelho’, é uma idéia objetiva e foge a meu arbítrio.”
(STAIGER, 1946, apud
LIMA, 2002, p.276)
Essa
discussão permeia muitos livros e o próprio autor que trago na epígrafe, Anatol
Rosenfeld (1994), nos diz que não existe
pureza de gêneros em sentido absoluto. Como já foi dito, discordo desse
posicionamento, embora defenda que, de fato, o trajeto entre um conceito de
gênero poético e a classificação de uma obra que pertença a este gênero seja
mesmo grande, sendo praticamente impossível que uma obra consiga encaixar-se em
qualquer gênero com a pureza aqui discutida. Seja pelas variações empíricas ou
influências histórias, seja pela comunicação que o artista almeja, dificilmente
haverá uma poesia de lírica pura, ou uma peça de teatro de natureza absolutamente
dramática.[1]
Se ainda existe alguma
defesa de uma fronteira rígida, no campo da criação literária, entre a Lírica,
a Épica e a Dramática, proponho que os professores derrubem esses muros e, com
eles, os julgamentos de valor de uma obra artística, sobretudo em um trabalho
desenvolvido por escolares, que não têm intuito estrito de serem artistas.
Em um dos primeiros
exercícios de criação dramatúrgica da oficina Práticas Criativas em Dramaturgia (2010), uma aluna apresentou uma
cena para toda a turma. Os colegas, ao ouvirem a leitura, começam a perceber
algo estranho na leitura da cena. Imediatamente, detectei qual era o espanto
coletivo: a cena criada tinha fortes características da Épica e poucos traços
da Dramática.
Percebi
que aquele exemplo seria um prato cheio para desencadear uma enorme discussão
com a turma. E não foi diferente. Todos diziam que a cena da aluna não era
dramática, que a autora tão somente se valia, em dados momentos, de diálogos
entre as personagens, mas que manipulava toda a cena com a presença incômoda de
um narrador.
Eu
deixei que todos se manifestassem e só ao fim elucidei o que, ao meu ver,
acontecera: a cena da aluna era, sim, dramática, mas carregava consigo fortes
traços estilísticos da Épica. Ainda que não fosse um estilo de cena que me agradasse,
não poderia julgar a cena da discente como pior que a dos outros alunos, só
porque a autora escolhera um caminho diferente.
É
a este tipo de atitude em sala de aula que o docente deve ficar atento: o
trabalho de um aluno não pode ser sumariamente tachado de pior que o de outro
apenas porque não tangeu a conceituação idealizada do gênero estudado, tampouco
porque não agradou seu docente (que pode bem preferir esse ou aquele traço
estilístico na criação de peças de teatro). Proponho, aqui, a derrocada dessas
fronteiras que só causam um mal estar ao trabalho do ensino em dramaturgia e
que impedem que este avance e se apresente em novos caminhos[2].
Ao se estabelecer o mínimo
de conhecimento sobre os gêneros, um professor pode, claro, solicitar que os
alunos tragam, para uma aula de criação em dramaturgia, exemplos de textos
líricos ou épicos que encontrarem em casa: rótulos de alimentos, revistas,
jornais, tudo que esteja ao alcance deles, sem recorrer a livros específicos.
Haverá muitos equívocos nas escolhas dos discentes, que serão exemplos
saudáveis para utilizar na sala de aula. Se um aluno traz para a sala de aula
uma poesia lírica ao invés de uma cena dramática, deve-se trabalhar com ele
partindo do que ele trouxe e o mesmo se aplica para outras possibilidades de
estudo dos gêneros.
Trata-se
mesmo, no caso de uma oficina de criação literária de peças teatrais, de um
jogo de sedução para a literatura dramática, que às vezes precisa seguir etapas
específicas para que a coisa dê certo. O aluno inicialmente precisa estar
estimulado a ler; assim sendo, ele precisa se sentir à vontade para
compartilhar essa leitura com sua turma. E essa, que parece ser uma etapa
irrisória, por vezes esconde a grande chave para o processo escolar: mostrar ao
aluno que ele é importante na escola, que o processo de aprendizagem não é
vertical, mas sim horizontal, e que as relações de conteúdo são também
construídas coletivamente, com a colaboração do discente na ressignificação dos
saberes pré-existentes na programação conteudística, presente no plano de curso
do professor.
Sem sombras de dúvidas,
sabemos que no sistema de ensino público brasileiro há grandes problemas com
alfabetização, sendo que quase sempre o escolar chega à 1ª série do ensino
fundamental I (atualmente o 2º ano do fundamental) sem saber ler e escrever.
Com isso, os profissionais do ensino da língua portuguesa, bem como todos os
outros docentes, enfrentam dificuldades para lidar com leitura e escrita –
habilidades necessárias a todo e qualquer processo educacional.
Desse
modo, o lugar responsável por uma parte da construção de saberes – a escola –
precisa ser convidativo, ainda que não exista uma estrutura física primorosa; ainda
que muitas outras coisas não caminhem como deveriam, é possível propiciar um
ambiente saudável e lúdico.
[1] Nesta medida, toda
obra literária pertence a um gênero, o que implica afirmar pura e simplesmente
que toda obra supõe o horizonte de uma expectativa, ou seja, um conjunto de
regras preexistentes para orientar a compreensão do leitor (do público) e
permitir-lhe uma recepção apreciativa. (JAUSS, 1970, apud LIMA, 2002).
[2] Ao longo do curso, percebi que a aluna
que mencionei há pouco tinha mesmo dificuldades de imergir diretamente na
escrita dramática, trazendo sempre consigo, em suas criações, seu bom e fiel
amigo, o narrador. Foi necessário desafiar a aluna a deixar seu amigo de lado e
a escrever apenas diálogos. Esse passou a ser o desafio dela, o que acabou
surtindo notáveis efeitos: a aluna percebeu que poderia usar, sim, um narrador
ou um traço épico quando desejasse, mas agora com mais consciência, não apenas
pelo impulso de sua experiência como jornalista. Ao fim do curso, ela já tinha
um domínio satisfatório do modo pelo qual ela queria imitar.
REFERÊNCIA:
ARISTÓTELES. Arte Poética e Arte Retórica.
São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1959.
COSTA LIMA, Luiz. Teoria da literatura em suas
fontes 2. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 2002. V. 2
ROSENFELD, Anatol. Teatro épico.São Paulo: Perspectiva, 1994.
SANTANA, Tássio Ferreira. Sedução ao Drama: para uma formação
continuada de professores da Língua Portuguesa. 2011. Trabalho de Conclusão
de Curso (Licenciatura em Teatro). – Escola de Teatro. Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2011.
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